quarta-feira, 14 de setembro de 2016

"Precisamos Falar Sobre Kevin" e o uso explícito do vermelho



ATENÇÃO: Contém Spoilers!

Dirigido pela escocesa Lynne Ramsay, o filme que tem no elenco Tilda Swinton (Conduta de Risco), John C. Reilly (Chicago), Ezra Miller (As Vantagens de Ser Invisível), entre outros. Precisamos Falar Sobre Kevin conta a história do difícil relacionamento entre uma mãe Eva, (Swinton), e seu filho, Kevin (Jasper Newell/Ezra Miller). O filme conta com três linhas de narrativas, mostra a atualidade onde vemos Eva tentando reconstruir sua vida enquanto sofre violência na rua, vandalismo de seus vizinhos e com seus próprios sentimentos, na segunda linha somos apresentados  a uma Eva diferente da atual, que está feliz no casamento, tem uma vida equilibrada e bem sucedida, até que engravida de Kevin e a partir do seu nascimento começamos a ver o relacionamento de mãe e filho desde recém nascido, passando a infância e chegando a adolescência e na terceira linha vemos um evento ocorrido na escola de Kevin, no qual ele está diretamente envolvido, e somos levados a essa linha sempre que Eva vê alguém que esteve envolvido naquele evento.


Quando o filme começa somos a logo apresentados a uma cor que será recorrente no filme todo. O Vermelho. Vemos Eva jovem, confiante e feliz na tradicional festa do tomate na Itália. Ela está toda suja com o vermelho dos tomates. Nesse momento somos levados a atualidade onde vemos uma Eva decadente, dependente de remédios e de vinho. Ao se levantar ela percebe que sua casa foi alvo de vândalos que jogaram tinta vermelha na casa. Que a remete a terceira linha narrativa, quando vemos uma Eva bem sucedida que recebe uma ligação e sai em desespero pelos corredores do trabalho e aperta o botão do elevador que é Vermelho.

A todo momento a cor vermelha é destacada no filme. Mas por que? Na maioria das culturas e religiões o vermelho é símbolo do pecado, do sangue, do ódio, do mal, da guerra. Tanto é assim que muitos diretores usam a cor vermelha para identificar seus vilões. Dessa forma podemos entender o vermelho como a presença de algo ruim, da morte e da culpa na vida de Eva. É interessante que a partir do momento que Kevin nasce o vermelho vai se tornando cada vez mais presente na vida de Eva. É um abajur, um vestido, uma camisa, uma bola, a cada vez que vamos ao passado e vemos Eva, o vermelho está ainda mais presente na sua família. Enquanto isso na Eva da atualidade vemos ela tentando se livrar do vermelho. Em uma  cena logo no início do filme, Eva entra no seu carro e limpa o vidro que está coberto de tinta vermelha, e fica tudo embaçado, é como se a diretora nos quisesse mostrar, o quão difícil está a vida para Eva, por conta da culpa, simbolizada pela tinta vermelha que embaça a visão dela, dificultando que ela prossiga no seu caminho.


A cada ida ao passado o vermelho parece mais presente e a cada volta a atualidade vemos Eva se esforçando ainda mais para se livrar do vermelho, em todos os aspectos de sua vida. Mas porque o vermelho está cada vez mais presente no passado? Já parou para se perguntar porque o filme se chama Precisamos falar sobre Kevin? Imagine se no primeiro momento em que Eva percebeu que Kevin não era uma criança comum, seu marido (Reilly) tivesse lhe dado atenção ao invés de falar que ele era uma criança como outra qualquer, dócil? E se Eva ao invés de procurar apenas um médico tivesse procurado um outro especialista? E se Eva tivesse insistido que seu filho tinha problemas? E se eles tivessem falado um com o outro Precisamos Falar Sobre Kevin? Tudo poderia ter sido diferente. E já que a cada momento que voltamos ao passado o problema aumenta, e a culpa aumenta, e automaticamente o vermelho aumenta. O único momento em que os pais conversam sobre Kevin, já é tarde demais. 

Na atualidade Eva tenta se livrar da culpa, tentando tirar o vermelho da sua vida, mas a cada vez que ela tenta recomeçar parece que algo a lembra do passado. Como na cena da festa de natal, Eva parece feliz e sorri, o rapaz que parece gostar dela se aproxima, mas quando ela se recusa a dançar, ele a lembra do passado e a culpa retorna no vestido, no prato que ela deixa em cima da cadeira. Ou então no momento em que ela está fazendo compras e vê a mãe de um das vítimas, ela encosta em uma prateleira cheia de latas vermelhas, é como se a culpa a estivesse consumindo novamente.


E conforme o filme vai passando vamos entendendo o que aconteceu. Somos surpreendidos ao ver que o ataque de Kevin a escola, não foi com uma arma de fogo, mas com a arma do herói da história que sua mãe lhe contou em um dos raros momento de paz que tiveram, a mesma arma que ele atirou contra a janela quando era criança, enquanto a mãe estava na cozinha. Um arco e flecha, a arma de Robin Hood.


Até que sequência final somos apresentados de forma explícita ao que realmente ocorreu. Quando Eva chega na escola, ela descobre que seu filho atacou os alunos com a arma que ele ganhou de presente de natal: um arco e flecha. Uma verdadeira afronta a mãe, já que aquela era arma do herói da história que Eva contava para ele. Quando ela chega em casa, ela está com uma roupa branca. Branco é símbolo de pureza, inocência e paz. Até aquele momento, Eva se acha inocente de tudo. Até que ela vê que seu marido e sua filha também estão mortos, mas antes de vermos eles mortos, vemos Eva entrando em casa toda suja do sangue de sua filha e seu marido. Naquele momento a culpa, simbolizada pelo vermelho do sangue, tomou conta de Eva, e ela se entregou a isso. Por isso a vemos tão acabada e derrotada na atualidade.
Quando ela começa a limpar a casa, chegando a limpar as janelas com uma lâmina de barbear, ela está mostrando que quer se recuperar. E note o seguinte: logo depois da cena em que ela deita na cama com a roupa suja de sangue se entregando a culpa, voltamos pra atualidade, e a vemos limpando o vermelho da casa, logo em seguida ela passa as camisetas de Kevin, ela então abre a cômoda, e vemos uma camisa vermelha, que ela cobre com uma das camisetas brancas, com detalhes em vermelho que ela acabou de passar, ela então fecha a cômoda que é branca. É como se ela tivesse dizendo pra culpa, que ela vai seguir em frente, não vai deixar que ela a consuma mais. Nesse momento, ela sai de casa e vai visitar o filho, e pela primeira vez vemos uma cena sem elementos vermelhos. Quando finalmente ela consegue conversar com ele, e ele tem um resquício de humanidade e a abraça chorando, somo cortados para fora em uma placa branca escrito EXIT (Saída) em vermelho. Naquele momento vemos no rosto dela a sensação de alívio, e os detalhes vermelhos no corredor vai ficando pra trás, cada vez mais desfocados, a câmera então mostra a saída, uma parede branca, que quase ofusca a visão. É como se Eva tivesse finalmente se livrado da culpa, e agora ela vai conseguir viver. Esse final emblemático, mostra que Eva deixou tudo pra trás e quer recomeçar sem se afetar pelo passado.

Precisamos Falar Sobre Kevin é realmente um filme sensacional. A forma como a diretora construiu a história, usando o vermelho como metáfora para culpa é explícita, mas funciona. Mas um dos grandes méritos desse filme, que além de roteiro, fotografia, direção de arte, som e atuações extraordinárias, nos leva a pensar e tirar nossas próprias conclusões sobre o que acabamos de ver.

É interessante e assustador ver como tudo chegou aquilo. O fato que desde o primeiro momento da gravidez, Eva parece não estar feliz, e quando o bebê nasce, ele já nasce com as consequências do seu desprezo na gravidez. Mas o que mais chama a atenção, é a passividade do pai. Ele não dá atenção ao que Eva diz e por isso tudo chega a um fim trágico para todos, e principalmente para vítimas inocentes. Se ele tivesse ouvido Eva quando ela disse Precisamos Falar Sobre Kevin, se ela tivesse insistido nisso, se tivessem procurado ajuda, tudo seria diferente. O pior é saber que isso acontece na realidade. Quantos Kevins não existem? Se os pais parassem e falassem mais vezes Precisamos Falar Sobre Kevin, muita coisa seria diferente.